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SOBRE VIVER

A arte de viver é simplesmente a arte de conviver… simplesmente, disse eu?
Mas como é difícil!

Mario Quintana


(…) Somente alguém que está preparado para TUDO, que não exclui NADA, nem o mais enigmático, vivenciará a relação com o outro como algo vivo.

Rainer Maria Rilke

Durante alguns anos lecionei Filosofia, uma disciplina pela qual tenho paixão. Gosto de reorganizar os espaços da sala de aula, lhes dando formatos adequados as interações que considero mais próprias ao tema que será trabalhado. Então, não uso necessariamente o quadro. Recordo-me de uma aula, com um grupo de alunos de graduação, em que trabalhava sobre o Filósofo Jean Paul Sartre e projetava algumas ideias em uma parede da sala, destacando aspectos de seu pensamento, quando resolvi comentar, de modo especial, uma de suas frases: “O inferno são os outros” (in. Entre Quatro Paredes. O Ser e o Nada). Devaneei interiormente com tanta mobilização sobre o significado da mesma, enquanto a mencionava, que peguei a caneta própria para quadro e escrevi a celebre frase junto a projeção, rapidamente e grifado, para espanto de meus alunos que exclamaram: “professora, você escreveu na parede”! Recordo-me plenamente da cena e continuo rindo do ocorrido. Foi empolgação. É que o tema rende assunto!

Sartre, filósofo e escritor francês, reflete sobre o sentido que o homem dá à própria vida, defendendo que a existência do ser humano precede sua essência. Ou seja, vamos nos constituindo em processo, a partir das nossas escolhas. No entanto, vivenciamos uma tensão relevante: nossas escolhas pessoais entram em conflito com as escolhas dos outros. Eles, os outros, impactam parte de nossa autonomia. No entanto, é pelo olhar do outro que reconhecemos a nós mesmos, com erros e acertos. O encontro com o outro, diverso de nós – que discorda, pensa de outra maneira, percebe a partir de suas próprias perspectivas, nos confronta, diverge em sua forma de ver e significar o mundo e a vida – é demasiadamente “mexetivo” e, algumas vezes, realmente o nosso inferno.

É próprio das relações humanas que em alguma medida sejam conflituosas: quando encontro o outro, há um confronto entre minha liberdade e a dele, a minha percepção e o meu modo de pensar e os dele. Considerando meus referenciais, vivências, lentes socioculturais e emocionalmente constituídas, terei em minha singularidade o único território possível a partir do qual posso tabular relacionamentos – percebo a partir do que faz sentido para mim, a partir de minhas próprias possibilidades de ver, em dado contexto. Somos diferentes em nosso modo de ser e de nos constituirmos como pessoas. O outro, igualmente diverso, interage a partir de sua singularidade constituída. É natural que haja estranhamento. Isso é exacerbado quando há um pensamento equivocadamente dogmático: “existe uma única verdade sobre o que quer que seja, eu a conheço e se você pensa diferente e eu estou certo, você só pode estar errado”.

O conflito gerado pelo confronto com o diverso de mim – esse outro, com suas peculiaridades próprias, em sua forma de ser e agir – no entanto, traz ganhos. A partir da minha abertura para a interrelação – atentando para a perspectiva do outro, para seu olhar sobre mim mesmo, para suas concordâncias e divergências – posso me constituir de modo mais pleno, posso ampliar meus horizontes de compreensão, se eu estiver aberto e disponível a isso.

A partir do que tematizamos, é possível afirmar que não há relação humana que não carregue em si um germe de tensão. A afirmação “o inferno são os outros” relaciona-se a constatação de que o outro também é livre, portanto, eu não posso controlar suas reações, o que ele sente, pensa, ou o que ele diz. O exercício da liberdade dele impõe limite a minha liberdade, explicita divergências, traz provocações sobre outros modos de dar sentido as escolhas cotidianas e de significar e valorar a vida e, tudo isso, frequentemente, pode suscitar conflitos.

O encontro com o outro gera estranhamento. Ele é diverso, ele diverge, ele é capaz de pensar de modo contundentemente diferente e ser incrivelmente impar em suas reações e isso pode ser desestabilizador e até irritante. Sim, como diz Quintana, “a arte de viver é simplesmente a arte de conviver”.  Que seria de nossas vidas sem as ricas interações pela convivência com outras pessoas? “Mas, como é difícil!”

O encontro com o outro também pode ser uma experiência de “maravilhamento” – posso interagir com ele com um sentimento de encantamento convidativo para perceber, aprender, entender o que é diverso de mim. Há outras possibilidades de respostas que não as minhas, outras possibilidades de compreensão, que não as minhas, outras possibilidades de visão, que não as minhas, e se conseguir lidar com essas diferenças de modo positivo e produtivo, toda essa diversidade pode me acrescentar ricas aprendizagens.

Retomo a afirmação de Rilke, “somente alguém que está preparado para TUDO, que não exclui NADA, nem o mais enigmático, vivenciará a relação com o outro como algo vivo. Eu considero que “estar preparado para tudo”, implica em entender que o outro é absolutamente outro, que e é ímpar e singular, que conviver com ele pode ser um convite a vislumbrar um outro universo existencial, de sentidos e compreensões que talvez sejam impensáveis para mim; implica em exercitar valores preciosos – o respeito, a liberdade, a compreensão, a solidariedade, a paciência, o perdão; em exercitar atitudes valorosas – a escuta atenta, a abertura a ideias novas e formas diversas das minhas de resolver as coisas, o diálogo sincero e a assertividade na comunicação; implica em saber que algumas vezes poderei vivenciar sentimentos belos e outras vezes sentimentos incômodos, mas com certeza, aprenderei muito e minha vida será enriquecida.

Christina Rocha

 

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