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Fazer Amor Com a Própria Alma

O hoje é apenas um furo no futuro Por onde o passado começa a jorrar
E eu aqui isolado onde nada é perdoado Vi o fim chamando o princípio pra poderem se encontrar”
(Banquete de Lixo – Raul Seixas)

 

Uma das coisas que me fascinam em conversar com as pessoas – como um desafio a compreensão –  é que suas palavras, expressões e pensamentos são sempre muito mais do que o que parece fazer sentido para mim, que as ouço, e com elas interajo. As suas palavras, pausas e silêncios, às vezes, são manifestação do transbordamento de uma conversa paralela interior, não explicita. Há sentidos e significados que escapam do que está presente no discurso – subjazem a aparente linearidade do que é dito.

Explico melhor. Outro dia conversava com uma pessoa, até então pouco conhecida para mim, quando repentinamente, sem um aparente sentido no contexto do que falávamos, ela exclama: “O hoje é apenas um furo no futuro por onde o passado começa a jorrar”. Anotei a frase. Fui pesquisar e descobri que pertence a música Banquete de Lixo, de Raul Seixas, que por sinal é complementada por outra, muito interessante: “Vi o fim chamando o princípio pra poderem se encontrar”. Na hora que a frase foi dita perguntei: “- De onde tirou essa frase?” Ela me respondeu: “Não sei, apenas veio a minha mente.” Porque lhe veio à mente será para mim eternamente uma incógnita. Era o mundo interior de meu interlocutor que fervilhava e gestou, em meio a suas reflexões silenciosas, um transbordamento. Tudo é sempre muito mais.
Ontem, em outra conversa com um professor e amigo, sobre postagens no facebook, ouvi-lo dizer: “Detesto quem não desliza… [não é seu caso!]: aprisionar sentidos é “pecado mortal”. Concordo, também me incomoda aprisionar sentidos. Isso me faz lembrar um texto de Lya Luft, escrito para Lygia Telles, no livro Mulher no Palco:

TANTO

Nada entendo de signos:
se digo flor é flor, se digo àgua
é água. ( Mas pode ser disfarce de um segredo.)
Se não podem sentir, não torçam
a arvore-de-coral do meu silêncio:
deixem que eu represente meu papel.
Não me queiram prender como a um inseto
no alfinete da interpretação:
se não me podem amar, me esqueçam.
Sou uma mulher sozinha num palco,
e já me pesa demais todo esse ofício.
Basta que a torturada vida das palavras
deite seu fogo ou mel na folha quieta,
num texto qualquer com o meu nome embaixo.

Do que o outro diz, só ele mesmo pode falar. Eu apenas posso falar do que faz sentido para mim.  Fico pensando se interpretação existe, ou, na verdade, é sempre um outro dito. Eu problematizaria radicalmente – se tivesse tempo para delirar com isso – a possibilidade de qualquer interpretação.   O termo “hermenêutica” provém do verbo grego “hermēneuein” e significa “declarar”, “anunciar”, “interpretar”, “esclarecer” e, por último, “traduzir”. Significa que alguma coisa é “tornada compreensível” ou “levada à compreensão”.  Então, não seria sempre uma tentativa de aprisionar o sentido?

Acredito que ele escapa! Creio que o sentido escapa de minha possibilidade de compreensão, como o outro, inteiramente outro, escapa de minha possibilidade de compreendê-lo. Só o vejo a partir de mim. No entanto, um outro, inteiramente outro, é um convite a desvelar outras faces de minha face, que só ele pode convidar.

Não sei qual intuição, compreensão, pensamento, sentimento, leitura, interpretação, paixão, razão, emoção, estavam presentes na afirmação: “O hoje é apenas um furo no futuro por onde o passado começa a jorrar”. Mas, sei que me pareceu encantadora. É hoje, sempre é hoje que o passado do futuro está sendo constituído. A vida é agora. Mas o agora é também o alinhavo entre o que eu sou, onde estou, e meu desejo, e o que quero fazer de mim. Quero fazer de mim, outra coisa ainda, outra coisa e linda, intensa, significativa.  Não vale viver apenas ao acaso – o desapego tem o seu valor, mas não apenas, até porque ele também seria uma escolha – vale também viver a intenção, a decisão, o foco e a determinação de se buscar o que está inscrito no coração como desejo. “Se as coisas parecem inacessíveis, ora, não é motivo para não querê-las. Que triste os caminhos se não fora o brilho distante das estrelas” (Mario Quintana) Mas, é preciso saber o que se deseja. Por isso penso que dentre todas as formas de se fazer amor deliciosamente, uma é essencial: é preciso beijar os espaços da própria da alma, tocá-los com delicada ternura e, de igual modo, força e paixão; é preciso acariciar suas curvas e sentir a textura de sua pele, transitar pelos desejos silenciados e desnudá-los, para que se possa constituir, se permitir parir a própria vida com mais realização.

Christina Rocha

 

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