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Perigo Cotidiano

Alguma coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que ainda
não aprendi o jeito de falar claramente sobre ela.”
(Caio Fernando Abreu)

Outro dia pensava, refletia, sobre as coisas cotidianas. Há imenso perigo em “cotidianizar”. É perigoso que nosso olhar se acostume. Que tenhamos a falsa impressão de saber, de possuir, de controlar, de ter realizado. Algo só é objeto de desejo enquanto inapreensível. Enquanto impossibilidade. Somos movidos por desafios. É a ausência que move nossa alma e não a presença.

A presença pode ser terna, meiga, doce, mas o encanto pode perder-se pelo costume. Embora não possamos passar duas vezes pelo mesmo rio — nem nós mesmos, nem o rio se repete, somos um outro a cada tempo e o mesmo se dá com o rio — constituímos uma impressão estática de pessoas e situações como modo de nos organizarmos e suportarmos a constante transformação de todas as coisas.

Uma relação pode ser intensa e mobilizadora, enquanto descoberta, admiração, maravilhamento. Enquanto convite, possibilidade. Seria bom que pudéssemos viver o pertencimento sem nos acostumar, jamais. Mas temo que constituir costume, como uma defesa tranquilizadora contra a mutabilidade da existência, seja um desafio insuperável da natureza humana. Por isso, às vezes, penso que é a impossibilidade a grande mágica que eterniza uma paixão. Esta subsiste como desejo entre o tempo e o espaço, numa certa virtualidade atemporal. Ao não limitar-se as fronteiras da convivência cotidiana, e a seus desafios próprios de mortais, a paixão se mitifica no espaço da transcendência, pelo desejo de ser, para além das nossas quimeras tão humanas.

Caio Fernando Abreu, de modo belo e profundo escreveu:

“[…] Você vai me abandonar […] e eu nada posso fazer para impedir. Você é meu  único laço, cordão umbilical, ponte entre o aqui de dentro e o lá de fora. Te vejo  perdendo-se todos os dias entre coisas vivas onde não estou. Tenho medo de, dia     após dia, cada vez mais não estar no que você vê. E tanto tempo terá passado,   depois que tudo se tornará cotidiano e a minha ausência não terá nenhuma importância. Serei apenas memória, alívio, enquanto agora sou uma planta carnívora           exigindo a cada dia uma gota de sangue para manter-se viva […].”

Penso o seguinte: se tiver uma paixão viva-a sem aprisionamentos. Ela será bela, enquanto livre. Deixe-a ser cor e luz, transmutando seu cotidiano com sua imprevisibilidade, encantando seu olhar. Como disse Quintana: “Se as coisas são inatingíveis… ora! Não é motivo para não querê-las… Que tristes os caminhos, se não fora a presença distante das estrelas!”

Mas se cultivou um laço — um cordão umbilical — preste atenção. Olhe bem e veja como se fosse a primeira vez, — pois cada tempo é a primeira vez. Se não estiver atento, tudo poderá tornar-se ilusão de cotidiano e perderá a cor, a forma, o sentido e você deixará de ver e, talvez, deixará de ver algo que um dia amou e desejou como imensamente significativo em sua vida.

Lembrei-me novamente do poema de Carlos Drummond de Andrade:

O Seu Santo Nome

Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda a razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.

Amor é intenso… raro e muito.

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