Você está visualizando atualmente Lei da Não Gravidade

Lei da Não Gravidade

Aprendi a não me deixar abater gravemente pelos impactos de nenhum desafio. Obviamente, sinto-me ansiosa, dolorida, irritada, preocupada e mobilizada como todo ser humano que sofre com as coisas próprias de nossa humanidade. Mas é bem isso: aprendi que há coisas que nos são próprias — “no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo” — que são inevitáveis à nossa condição de seres humanos. Enquanto existentes, vamos sofrê-las. A grande questão é: Como sofrê-las?

Há algum tempo rompi com a ideia de que a felicidade de viver está em chegar a um estado idílico, maravilhoso, ideal. Também crer que um momento assim vá existir, no futuro, nunca me consolou. Os desafios são aqui e agora. O melhor foi ter compreendido a importância da resignação, ou seja, de renunciar a ilusão de um estado de perfeição onde apenas o prazer e a realização fossem a tônica das sensações existenciais de plenitude. O que é pleno também é, inúmeras vezes, desafiador, frustrante, incomodativo, sofrido, angustiante. Com certeza, cada um desses sentimentos convive com nossas realizações, alegrias, conquistas, deliciosos afetos e vitórias.

A vida plena tem inúmeras faces: antagônicas, contundentes, conflitivas, doloridas e igualmente apaixonantes; realizadoras, comoventes, felizes e amoráveis. O grande absurdo — adjetivo latino absurdus, “desagradável ao ouvido”, e, por extensão, incompreensível, sem sentido, contraditório — realmente está em como cada uma dessas faces se interpenetram todo o tempo, compondo um único rosto: o meu rosto, o rosto de minha vida.


Como excluir da vida a dor, o envelhecimento e a morte? Com certeza tentamos, as criações humanas o manifestam. Podemos minimizar impactos, mas não conseguimos evitar nenhuma das três condições de nossa humanidade. Vamos vivê-las, isso é inexorável. Rogos ou súplicas não vão nos eximir destas realidades de nossa condição como seres humanos. Essa é uma lei implacável, pois, eis que dados os fatos — contra os quais não há argumentos — não adianta que os negue, mas importa que os viva com a dignidade que também deve ser própria de nossa natureza humana.

Voltando à questão de “não me deixar abater gravemente pelos impactos de nenhum desafio”, esclareço que está relacionado a ter decidido, pessoalmente, pela “lei da não gravidade” — de não dar a algo, a algum acontecimento uma ênfase demasiadamente séria, circunspecta, refletida, intensa, profunda, dolorosa, dura, penosa e difícil, a ponto de permitir que toda a minha vida gire em torno desta única circunstância, indefinidamente. De ter decidido que sofrer impactos faz parte, e que é próprio de estar viva lidar com as intempéries que todos os seres vivos precisam lidar. De ter decidido que “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.” (Che Guevara) — “há que endurecer-se, mas sem perder a ternura jamais.”

Então, por fim, retomo a questão da ternura. Não posso falar em ternura, sem recordar  do belíssimo poema “Ternura” de Vinícius de Moraes:

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma…
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar
[extático da aurora.

E após, deliciar-me lendo e relendo esse texto — que é como um carinho em êxtase para o coração — posso afirmar que nada merece demasiada mobilização de minha alma, a não ser os gestos ternos. Há ternura, há gestos ternos, histórias ternas, momentos ternos. A vida pode ser pródiga deles, desde que possamos olhar com atenção. Então, que as coisas graves tenham o seu devido lugar, desde que restritas às suas condições de determinar o todo de minha existência.

Anoitece. A noite é escura, longa e misteriosa. Tentamos ver entre luz e sombras algumas nuanças de esperança. Deixamos caminhos e novos vão se constituindo. Tateamos lembranças, algumas vagas, algumas felizes, outras doloridas, tantas, tantas paisagens de nossas travessias. Adormecemos entorpecidos em meio a imagens e recordações, sorrisos, lágrimas, devaneios, encontros e solidões, toques e distanciamentos. O sono vem e depois se vai, sono e lucidez inebriada se alternam até que chegue o amanhecer. Há esperança, pois o amanhecer sempre chega.

Que a ternura me faça renascer a cada tempo, porque o que adoro, adoro mesmo pensar é que “o inesperado sempre faz uma surpresa”. A vida tem essa coisa linda que é desnudar-se em possibilidades a cada nova manhã. Como afirma Sophia M.B Andresen em seu poema:

  “Apesar das ruínas e da morte,
            Onde sempre acabou cada ilusão,
            A força dos meus sonhos é tão forte,
            Que de tudo renasce a exaltação
            E nunca as minhas mãos estão vazias.”

Deixe um comentário